Aventuras Musicais

                                                                                                    Aventuras Musicais...

                Todos sabem da minha paixão pela música.

            Desnecessário seria dizer de tantas aventuras e peripécias que já me aconteceram ao longo desses anos, envolvendo a divina arte e seus mistérios.  A pedido de algumas Irmãs que acompanham de perto minha vida e experiências musicais, passo a partilhar, com alegria e despretensão, alguns desses momentos marcantes e por vezes engraçados, divertidos...

 

                                                             Por conta do Boris!...

              Sempre que posso, freqüento a Sala São Paulo, onde acontecem grandes concertos, com famosas orquestras, solistas, corais, intérpretes de fama internacional, não só da capital paulista, mas vindos de outros países. Muitas vezes o ingresso é caro, e sempre dou um jeitinho de consegui-lo de graça. Como acontece? Chego cedo, e já aviso minhas Irmãs: "Se eu não voltar logo, é porque consegui."Elas torcem por mim.

             Planto-me na porta da bilheteria, estudando e analisando quem chega, pressentindo, quase, algum ingresso sobrando... Certa vez, era nosso pianista Nelson Freire, mineiro que reside na França, com a Orquestra de Heidelberg, Alemanha. Imperdível, portanto. Lá fui eu... Um amigo da Orquestra do Estado ficara de me dar o ingresso, mas não apareceu, nos desencontramos.  E o tempo se esgotando... hora de começar o concerto. De repente vi o Boris Casoy na bilheteria, e não tive dúvida: "O senhor não teria um ingresso para mim? Sempre vejo seu Jornal e acho ótimo." Ele sorriu, me passou o ingresso, ao que eu respondi, alegria estampada no rosto:  "Isto é uma vergonha, vir para o Teatro sem ingresso! Que Deus lhe pague em dobro!..."

             Pronto! Alma leve e feliz, agradecida a Deus por tanta generosidade, fui me deliciar com a divina música que se fazia nos dedos mágicos do genial pianista acompanhado pela excelente orquestra.

             Ah! As minhas aventuras musicais!...

 

                                  Sorte minha!...

             Outra vez, de novo na Sala São Paulo, cheguei com as mãos postas, em sinal de oração, suplicante por um lugarzinho. Desta vez foi uma especialíssima apresentação da Orquestra Jovem, com músicos do mundo inteiro, dirigidos pelo pianista e regente israelense  Daniel Barenboim, em favor da paz. Essa eu não podia perder... Mas a fila era enorme. E lá fui eu, me aproximando da bilheteria, onde todos já me conhecem... Quando me viram de mãos postas, em atitude suplicante, confirmaram:  "Pois é, hoje precisa rezar mesmo, pois não há convites sobrando... está difícil." Mas eu fiquei lá, teimosa e cheia de esperança. Sempre atenta aos que vinham, de repente com alguma "sobrinha" para uma pobre pedinte, "esmoleira musical", como me chama Irmã Rosilene... Chega um distinto senhor, e lá fui eu ao seu encontro: "O senhor teria um bilhete sobrando?" E ele, prontamente: "Tenho, sim! Minha esposa ficou doente e não pôde vir!..." Só de me ver feliz e emocionada, até ele se emocionou... E ficamos lado a lado, na sala,  deixando-nos envolver pelos acordes celestiais, traduzindo amor e paz, levando-nos ao céu, trazendo o céu até nós!... Quando voltei para casa e fui fazer meu último gesto do dia, visitar o Amado na Capela, caí de joelhos, cheia da música de Deus.

        Ah! Minhas aventuras musicais!...

 

                                                     Desistir, nunca!...   

             Nunca desista dos seus sonhos! Ouse sempre de novo! É assim que faço. Com tudo na vida, mas especialmente com a música e outros alimentos substanciais para o espírito e o coração. Pois bem! Aconteceu de novo, no mesmo Teatro Cultura Artística, agora em 2005.

             Desta vez, já bastante esperta e experiente na arte de mendigar "ingressos musicais", me mantive bem longe da entrada onde os convidados destacam seus ingressos e são admitidos ao recinto sagrado do concerto. Não podia ser vista por eles! Mesmo assim, eu até me vesti um pouco melhor, para impressionar  os anfitriões!... Fui me misturando ao povo que chegava, e eis que, de repente aparecem três distintas madames, que logo  abordei: "Será que as senhoras teriam algum ingresso sobrando para mim?" - "Espere um pouco, me disse uma delas, pois os nossos convites estão na bilheteria e vamos retirá-los. É que vinha conosco um amigo americano, mas ele está com gripe, ficou doente, e não pôde vir. Talvez o dele esteja sobrando." Esperei confiante! Sorte minha então!...

             Conferidos os 4 convites e as 3 presenças das respeitáveis senhoras, fui premiada solenemente, adentrando o espaço do evento, feliz porque vencedora, uma vez que, naquela noite, era nada mais nada menos que João Carlos Martins regendo também peças do grande Bach, do qual é especialista. A história deste incrível pianista e agora regente é tão emocionante, que merece ser contada, como exemplo a ser seguido. Fica para a próxima vez, prometo! Naquela noite memorável, as lágrimas fizeram parte da emoção e felicidade, em uma experiência inesquecível! O Divino Músico sabe o porquê!...

             Ah! Minhas aventuras musicais!...

 

                      Esta foi em Salzburg!...

        Esta aconteceu em Salzburg, na Áustria, quando lá fui estudar música, entre 1983 e 1985. Morava então com as Monjas Beneditinas, no alto do Nonnberg, aliás com uma vista paradisíaca, como se vê no filme da Noviça Rebelde. Eu cantava no coro da Catedral, estudava música e participava de tudo o que fosse possível. Salzburg, terra do genial Mozart, vive de música e de festivais. Janeiro é o mês do seu nascimento, e aconteciam cerca de 25 concertos por dia, com orquestras, cantores, regentes e personalidades famosas vindas de toda a Europa. Ficaram sabendo que havia no convento das monjas uma Irmã brasileira interessada nos concertos, apaixonada por  música. Recebi então vários convites, que eu deveria buscar na Casa de Mozart, hoje museu. Mesmo sem entender bem, fui literalmente correndo escadaria abaixo, pelos mais de 300 degraus, à procura dos meus "presentes",  fora de mim de pura alegria.

        Veio o primeiro concerto, no "Festspielhaus", uma Casa de Espetáculos onde acontecem os concertos mais célebres e chiques da Europa. O que eu não sabia era que tinha de ser usado traje a rigor: para as mulheres, vestido longo, salto alto, enfeites mil e franjas coloridas, como costuma usar o povo de lá em ocasiões como esta. Era inverno e a neve caía. E lá fui eu, naquela noite fria de janeiro, feliz da vida, usando uma bota nº 38, quando calço 34, mas que eu havia ganho e portanto "servia" em mim... Uma saia muito simples e uma blusinha surrada cor-de-rosa, além de alguns "complementos" por baixo, para me proteger do frio. Um casacão forrado por cima de tudo. Era impossível tirá-lo sem passar vexame.

        Quando lá cheguei, me deparei com aquele desfile de modas, as botas sendo trocadas por sapatos de salto, os longos e brilhos, me senti a própria "Gata Borralheira", a única destoando daquele espetáculo colorido. O jeito foi disfarçar, subindo as escadas e entrando direto para a sala de concertos. Claro que me barraram na entrada... Não se pode subir para o local da apresentação vestindo o casaco, por ser tudo calafetado, e é preciso deixá-lo no saguão. Voltei, pois, e tive que tirar os apetrechos, ficando assim desnuda, mostrando minha pobreza real, chamando a atenção de todos, que  olhavam incrédulos para aquela estranha figura humana, e examinando-me de alto a baixo. Enfrentei o desafio e subi as escadas. Por sorte, meu lugar era na última fileira, a 4ª poltrona. Como não lembrar de algo tão destoante e ridículo?...

        Encolhi-me no meu canto e fiquei à espera da Orquestra, olhando aquele desfile de modas, rindo por dentro: "Será que essas madames entendem tanto de música quanto de bem vestir e de enfeites e de brilhos?... Queira Deus que sim!..." Finalmente começou o concerto, com a Orquestra Filarmônica de Viena. No intervalo, todos saíram para um cafezinho, menos eu, é claro. Mas queria ver o Programa, pois são verdadeiras aulas de música. Pedi-o à minha vizinha,  que fingiu não ouvir, e claro, não me emprestou, com uma cara de dúvida: "Será que ela sabe ler?..." Foi o que li nos seus olhos. De novo eu me ri por dentro... à espera da 2ª parte do concerto, que foi igualmente solene, divino, emocionante.

        Quando, no final, começaram os intermináveis aplausos e ovações, tratei de sair de fininho, para ninguém me ver e eu não ver ninguém. Saí feito uma bala, cantarolando pela neve. Afinal, era uma façanha jamais vista e que tão cedo não se repetiria. Eu estava mesmo com vontade de partilhar minha experiência com as Monjas, que sempre davam boas gargalhadas com os meus "desajeitos" cometidos naquelas terras musicais, feitas de magia... E como nos divertimos com mais esta aventura!... Para sempre marcará minha vida! Pode-se imaginar a cena?...

             E basta por hoje, para não rirem demais os que me lerem.

             Ah! Minhas aventuras musicais!...

 

                                     Em Viena, em pé!...

              Estando eu em Augsburg, no sul da Alemanha, em 1984, não podia deixar de ir a Viena. Motivos eu os tinha de sobra. O maior: conhecer a terra que viu nascer Bárbara Maix, nossa Fundadora, a "Bela Fonte" que começou a jorrar no Schönbrunn, o deslumbrante palácio de verão dos imperadores austríacos, e que fica nos arredores de Viena. É óbvio também que eu não podia deixar de assistir a algum concerto na capital austríaca, a terra da música. Tudo parecia um sonho, mas era verdade...

              Optei pela ópera Parsival, de Richard Wagner, na Staatsoper = Ópera Estatal de Viena. Ali acontecia algo de  inédito, que eu nunca vira antes em minha vida. Trata-se do Stehplatz = lugar em pé, que beneficia sobretudo os estudantes, que não tendo como pagar o ingresso inteiro, se contentam em assistir ao concerto em pé. Não entendi bem como seria, mas lá fui eu... ficando na longa fila, horas antes do espetáculo, naquele domingo à tarde. Quando chegou minha vez, paguei a bagatela de 15 shillings como ingresso e fui para o teatro marcar meu lugar, amarrando um lenço colorido no corrimão onde ainda havia espaço livre, lá em cima, nas galerias. Aquilo já era uma festa colorida, feita de lenços e panos dos mais variados tamanhos e feitios. Estava garantido o meu lugar. Saí e fui passear de bonde pela cidade, preenchendo as três horas que faltavam para iniciar o espetáculo.

              À hora marcada, voltamos, e o suntuoso teatro foi se enchendo daquele povo chique e dado à boa música. Os panos delimitando o espaço do Stehplatz se tornaram gente de verdade, ocupados por nós, os pobres e estudantes. Todos muito bem em pé, é claro. Às 17 horas teve início o longo concerto, que duraria até às 22 horas. Lá pelas tantas, o entusiasmo se fez cansaço, e eu simplesmente me deixei sentar nos degraus da escada, que estavam ali, vazios parecendo à minha espera... Demorou pouco a alegria. Logo chegou um segurança e me pôs de pé: eu havia  pago "lugar em pé", e portanto, não podia sentar. E assim fiquei até o fim, me divertindo por dentro e de qualquer modo, feliz, pelo privilégio de estar ali, assistindo a uma ópera de Wagner com a orquestra e o coro estatal de Viena, emoção registrada para sempre no meu coração e no ticket que guardo: Staatsoper - Galerie Stehplatz, nr. 162.  Era o dia 22 de abril, Páscoa do Senhor e minha!  Como esquecer?!...

              Ah! Minhas aventuras musicais!...

 

Um presente sobrenatural!

                                                                                                

              Eu sabia que ele era sobrenatural na regência, mas desta vez superou todas as expectativas. Era a  noite de 25 de maio deste 2008, quase às vésperas do meu aniversário, que aconteceria no dia 28, quarta-feira. Um daqueles domingos raros em que estou em São Paulo, não cantando por aí com o povo de Deus... Que presente melhor poderia eu me dar senão a divina música?... Veio de repente  o impulso, que logo coloquei em ação.  Só que  não havia mais ingressos, estavam todos esgotados. Mesmo assim,  meu coração me pediu para tentar, como sempre... Quando o coração solicita, intui, sente, é preciso atender, porque ele acerta. E  em se tratando de Daniel Barenboim, não podia ser diferente.  O espetáculo estava marcado para as 19 horas, na Sala São Paulo. Sob a batuta de Barenboim, pianista e maestro israelense de origem argentina, a orquestra convidada foi a Staatskapelle Berlin (Alemanha), com quase 450 anos de tradição, uma das melhores e mais antigas do mundo, formando ambos uma perfeita parceria.  Que mais eu poderia desejar naquela memorável noite que transformou o tempo em eternidade?...

              Filas enormes se formavam: os que já tinham seus ingressos, os que procuravam adquirir algum, os estudantes que dependiam de espaço, pagando mais barato... E lá ia eu , de cá e de lá, encarando os que vinham, inquieta e ansiosa, perguntando de alguma sobra, sempre com o "não" solene dos felizardos. Como eu, havia muitos, só que os outros, tímidos e medrosos, olhavam de longe, quase apáticos... ao passo que eu, atenta e pronta para "atacar" a primeira oferta, continuei firme à procura. Eis que de repente surge uma donzela com um convite: "A senhora estava querendo um ingresso, não?" À minha reação imediata, formou-se ao nosso redor um como que enxame de abelhas, com dezenas de candidatos... Mas eu, sorrindo feliz, encarei os demais, dizendo ter sido a sortuda que havia se manifestado e sido atendida em seus apelos. Segurei firme o ingresso, agradeci e adentrei as portas da casa, como se tivesse adquirido asas,  ingressando no céu... O mais incrível é que o tal lugar foi no coro, ocupado quando não há vozes com a orquestra, e de onde se vê o maestro de frente. Quando começaram os primeiros acordes do concerto, o tempo não contou mais, e toda a platéia ficou hipnotizada,  tomada inteira pela música, que Barenboim regeu de cor, de memória, algo assombroso, jamais visto.

              Começando com Wagner, o ponto alto foi a Sétima Sinfonia  do austríaco Anton Bruckner, tão impregnado de silêncio e mistério, que a Sala São Paulo se transformou em verdadeira catedral, onde se respirava o paraíso, contagiados todos pela celeste atmosfera do  chamado "músico de Deus", ali concretizado na memória e nas mãos do talentoso  regente, conduzindo uma orquestra também mágica. "Cada compasso, com ele, vale a vida: e a vida parece valer cada compasso".

              "Barenboim  é sobrenatural ao reger Bruckner em SP", escreveu Arthur Nestrovski, articulista da Folha, no dia 27 de maio, comentando o quase inexprimível. Também é dele a frase do parágrafo anterior.  Deixo então que nosso  crítico musical conclua magistralmente, em nome de todos nós: "Não havia jeito de dar bis, depois de um monumento desses: e Barenboim - sempre simpático, com a audiência tanto quanto com a orquestra - estava absolutamente certo de não tocar mais nada. Foi música para encher os ouvidos e a alma; uma orquestra de sonho, passando e ficando no sonho de vida de cada um de nós."

              Ah!Minhas aventuras musicais!...

 

A pão com banana, em Londres!...

              Estudava eu em Augsburg, perto de Munique, no sul da Alemanha, em 1984. Meu irmão Mário Luiz, a quem desde tenra idade chamamos carinhosamente de "Maninho", trabalhava na Lufthansa do Rio de Janeiro, e foi me visitar nas férias de Pentecostes, que duram 8 dias. Quis ele me dar um presente: visitar Londres ou Paris. Não cabendo em mim de alegria, fiz a minha escolha, preferindo a capital inglesa.

              E lá fomos nós por 5 dias, hospedando-nos na casa da Sra. Jakubski, conhecida de Irmã Anselma, minha amiga dominicana onde eu morava. Como convém a pessoas pobres mas honestas, primeiro fizemos nossos cálculos, para ver que prazeres poderíamos nos dar numa capital que oferece um sem número de encantos aos seus visitantes, mas com um preço altíssimo, tudo cobrado em libra esterlina, como até hoje... A lista se fez: pagar logo a dona da casa; adquirir os bilhetes do metrô e ônibus de dois andares, muito originais; visitar o divertido Museu de Cera "Madame Tussauds" , único no mundo, e a famosa "National Gallery", na Trafalgar Square; assistir a um musical e um concerto da Sinfônica de Londres... O mais seria gratuito: passear pelos  inúmeros e belíssimos parques londrinos; visitar o Palácio de Buckingham e ver a troca de guarda da rainha, feita de nobreza e elegância impecáveis; conhecer as fortalezas e os castelos medievais com suas famosas torres;  adentrar as catedrais e igrejas, sobretudo a Catedral de Westminster, um verdadeiro monumento de beleza, com uma história milenar; percorrer também  as margens do rio Tâmisa  ao pôr-do-sol, regular nosso tempo pelo famoso Big Ben de "pontualidade britânica",  deixar-nos surpreender enfim por outras maravilhas da natureza e do Divino Artista...

              Começamos então nossas aventuras pela inspiradora Londres. Tudo era  maravilhosa surpresa. Mas quando a fome bateu, nos demos conta de que não sobrara dinheiro para um almoço melhor ou mesmo um lanche decente. Restou-nos comer pão com banana todos os dias, além de uns poucos biscoitos, o que chamava a atenção dos turistas e passantes: à sombra das árvores nos parques, à margem dos lagos ou nas escadarias dos palácios e castelos, lá estávamos nós, felizes e sorridentes, comendo nossa frugal e tão brasileira refeição: pão com banana... Sim, cada qual prioriza o que lhe é mais importante: uns gastam nos restaurantes, enchendo o estômago... O nosso alimento foi a cultura, a música, a arte, que nos encheu o coração. As mais de cinco horas passadas a contemplar as pinturas e obras de arte na Galeria Nacional, o tempo gasto no Museu de Cera que tanto nos divertiu com as figuras  interessantes quer na política, na arte ou religião, o giro pela cidade nos estranhos ônibus de dois andares, sobressaindo em seu vermelho com a direção do lado direito, as corridas pelos parques, o encontro com os Punks na Trafalgar Square, o concerto dos Meninos Cantores na Igreja St. Paul, tudo foi alegria e festa.

              O ponto máximo da nossa divertida estada na capital foi assistir ao musical "West Side History" - Uma história de amor -, com música de Leonard Bernstein, seguida do Concerto com a Orquestra Sinfônica de Londres, ambos  programas muito especiais, no início da noite. Arriscamos o concerto, pois não havia mais ingresso disponível, mas tínhamos a certeza de  que iríamos conseguir, o que de fato aconteceu, pois era Deus que nos impelia!... O pouquíssimo intervalo entre um e outro, literalmente fez nossos pés correrem e voar o coração, atravessando parques e ruas... De novo a alma, desejosa do divino alimento musical, apaziguou a fome do estômago vazio, servida a pão com banana enquanto corríamos!... O mais fica por conta da imaginação!... Beethoven, a quem o concerto era dedicado naquela noite, certamente aprovou, oferecendo-nos sua Sinfonia "Pastoral" à mesa do musical banquete, que foi também a nossa despedida.

              Ah!Minhas aventuras musicais!...

 

Entre dor e alegria

Aconteceriam dois concertos na mesma noite de 18 de agosto de 2008, uma segunda-feira: no Teatro Cultura Artística, sob o patrocínio da Sociedade de Cultura Artística, com a Orquestra Filarmônica de Liège (Bélgica) e na Sala São Paulo,  a Orquestra Filarmônica de Câmara de Freiburg (Alemanha). Optei pela segunda, patrocinada pelo Mozarteum Brasileiro. É claro que, sem ingresso, na base da "esmola musical", como sempre, pois ambas exigiriam o desembolso de  R$ 80,00 no mínimo. Lá fui eu, entre temerosa e confiante. Primeiro participei da Eucaristia, às 19 horas, na Igreja, como a  pedir a bênção ao Senhor para a divina música  que se seguiria à Missa,  aliás também verdadeira  liturgia...

Por que entre dor e alegria?

a)      Primeiro a dor da destruição do Teatro Cultura Artística, bem na véspera do concerto da Orquestra, que lá tocaria duas noites. O  memorável teatro, com mais de 50 anos de história e cultura, foi consumido pelas chamas na madrugada do domingo, tragédia  amplamente noticiada pelos jornais. Ricardo Feltrin, editor-chefe da Folha, comenta: "O incêndio do Cultura Artística também matou duas obras de arte da música: os dois pianos Steinway que viviam no teatro..." Ambos valem milhões e já foram tocados por celebridades como Nelson Freire e outros pianistas. Estado de choque, tristeza, dor, mas também muita solidariedade comove os membros da sociedade: "Dá vontade de chorar. Estamos todos abalados emocionalmente, tendo que enfrentar a situação e resolver problemas enormes... "Estou comovido com a solidariedade das pessoas..." , disse um dos diretores.  O teatro  é um dos mais importantes do Brasil, e um marco da vida musical de São Paulo.Tantos concertos  já tocaram meu coração naquele espaço sagrado!  Precisei ver o local para acreditar!... Esperamos todos que seja recuperado e reconstruído o prédio ali mesmo, como templo vivo da cultura. Aquela casa precisa voltar a se encher de música...

b)     Misturada à dor de quem teve que transferir o concerto do Cultura Artística para o Theatro Municipal, naquela noite, veio a minha alegria, antecedida pela tensão e incerteza. Imagine-se eu andando de cá e de lá, indo ao encontro dos que adentravam, felizes e sorridentes, a Sala São Paulo. Foram várias as tentativas, seguidas sempre do "não, não tenho".  Eram quase 21 horas, início do concerto, quando a alegria se fez: uma distinta madame vinha sozinha, e eu me dirigi a ela: A senhora teria um ingresso sobrando? - Tenho, disse ela imediatamente. Meu marido está trabalhando e não conseguiu chegar a tempo. Bem, só  em ver minha felicidade estampada no rosto, entre comovida e espantada, ela sorriu e se disse também emocionada, por ver alguém tão feliz... E eu não cansava de repetir-lhe meu agradecimento e gratidão. Até balinha de funcho lhe ofereci, o que ela aceitou de bom grado.  Conclusão: na Sala lotada, em vez de ter o esposo a seu lado,  lá estava eu, ocupando um excelente lugar no balcão superior,  me deliciando  com a jovem orquestra. Regida pelo também jovem Andreas Winnen,  elegante e estética figura musical, ele quase nos levou ao êxtase. De cor e de forma quase dançante, esvoaçante, regeu as também leves obras de Brahms e Schubert, um dos românticos preferidos meus. Foi  uma sinfonia da vida, um poema de amor, um louvor ao Deus-Músico,  que mais uma vez  presenteou sua filha com o dom da divina arte musical.

     Ah! Minhas aventuras musicais!...

 

 Lourdes de graça!

              Experiência incrível foi esta! Eu passara três meses em Salzburg, ficando conhecida por muitos, amigos do Mosteiro beneditino do Nonnberg onde me hospedei, e cantores do coro da Catedral em que cantei. Com alguns meses em Augsburg, sul da Alemanha, em julho de 1984, recebi um telefonema: "Estamos fazendo uma Peregrinação a Lourdes, e uma bondosa madame desistiu na última hora... A senhora gostaria de ir no lugar dela? Já está tudo pago... é de graça..."

              Podia eu resistir a um convite desses? Uma semana depois lá estava eu embarcando no trem especial em Salzburg, rumo a Lourdes. Indizível o que significou para mim esta "peregrinação mariana", uma vez que passamos por diversos santuários marianos, na Áustria e Suíça, culminando em Lourdes, situada nos Pirineus franceses. Éramos 650 peregrinos, entre os quais 22 sacerdotes e o bispo de Salzburg. Muitos doentes em suas cadeiras de rodas, mas alegria incontida e confiança incondicional,  devotíssimos de  Maria, o que é uma característica do povo austríaco.

              Passamos por Marselha, às margens do Mediterrâneo, onde fomos à Igreja Nossa Senhora da Guarda, no alto de um rochedo, com uma vista paradisíaca para o mar. Lá celebramos a Eucaristia, conhecendo um pouco a cidade e seguindo viagem...

              A noite luminosa nos viu chegar em Lourdes, e o tempo parecia curto demais para tudo o que eu queria experimentar. Corri à gruta da aparição, onde milhares de peregrinos tocavam a rocha como a querer alcançar Maria... acompanhei a procissão das tochas, um mar de luz em movimento e envolto no silêncio pleno de Deus. As três basílicas superpostas que se erguem majestosas como que em oração;  a fonte que desde a primeira aparição a Bernadete Soubiroux jorra a mais límpida água,  onde todos, mas sobretudo os doentes vão buscar conforto e alívio, renovando sua vida; a deslumbrante paisagem verde e montanhosa, enfim o clima de oração e mistério que pairam no ar, fazem de Lourdes um local especial e indescritível, com uma força magnética que a todos atrai, transforma e renova. Vendo aquela imensa luz na escuridão, pensei: "Não, o mundo não está perdido. Enquanto Lourdes existir, haverá esperança e salvação."  Participar, com milhares de peregrinos do mundo inteiro, da procissão luminosa e da procissão eucarística - com o Santíssimo,  contemplar os mistérios da vida do Senhor em mais de dez línguas, visitar os "lugares santos", celebrar a Eucaristia, banhar-se na piscina batismal, fonte inesgotável de graça e vida que jorra há mais de cem anos, pisar aquele chão santo, é encontrar o Amor, é experimentar Deus, é abrir-se para o paraíso onde Maria nos sorri e acolhe, é sentir-se peregrino rumo à Pátria definitiva, o céu.

              Depois de seis dias, completamente tocados pela graça e entregues ao amor, envoltos em luz, a volta... passando por Nevers, onde Bernadete se tornou Religiosa, morreu e está enterrada. Impressionante seu corpo encontrado intacto após 30 anos. Lá, mais uma Celebração Eucarística, a última do grupo, seguindo viagem... Foi então que tomei o violão de alguém e me pus a cantar, não cabendo em mim de alegria, emoção e gratidão... Os microfones de todos os vagões foram ligados, e o meu canto se fez ouvir por todo o trem: Maria, ó Mãe cheia de graça... O essencial é invisível... Parabéns (alguns estavam de aniversário)... Até logo, meu amigo... enfim, o que eu lembrava e conseguia mal expressar na língua alemã, mas que os corações compreenderam e aplaudiram, já que a música é linguagem universal. Foi o modo que encontrei para pagar tanta graça e benefícios recebidos. Quando nosso grupo desceu do trem, em Salzburg, eram centenas de lenços brancos nas janelas acenando, olhos chorando, rostos sorrindo enquanto se despediam os que continuavam  para Viena, ponto inicial e final da peregrinação. Quase desfalecendo de cansaço e emoção, tomei o trem para Augsburg, fechando os olhos, para ver melhor aquilo que é invisível aos olhos e só se vê bem com o coração... Tudo continua vivo em mim, porque Lourdes me tocou e encheu de luz e céu!

              Ah! Minhas aventuras musicais!...

 

Que canto, que nada!...

              Em setembro de 2004 fui cantar com diversas comunidades brasileiras e portuguesas nos Estados Unidos. Começando pela Flórida, cantei em Hollywood, Kendall,  Pompano Beach, Miami Beach e imediações. Era época de tornados e furacões... Muitas casas estavam fechadas, portas e janelas pregadas, alimentos estocados, o povo se preparando para enfrentar e resistir ao imprevisto, uma vez que ninguém sabe com que força e em que direção exatamente passa a fúria do vento.

              Chegou a vez de cantar em Orlando, na pequena Winter Garden. Comigo, foi anunciada a passagem do furacão Jeanne, naquele final de semana, entre 23 e 25 de setembro, com o auge de sua força na madrugada de sábado para domingo.

              Na sexta-feira de noite nos reunimos um grupo de 40 pessoas,  na Igreja da Ressurreição, onde estava Pe. Volmar Scarevelli, scalabriniano gaúcho, para um ensaio e programação do final de semana. O sábado amanheceu com o aeroporto fechado, as lojas e restaurantes interditadas, o povo orientado a já permanecer em casa, enfim as ruas se esvaziando, uma espécie de prenúncio de algo terrível que estava por acontecer. Impossível descrever a sensação que foi tomando conta de nós!...

              Na tarde do sábado, Pe. Scaravelli e eu fomos a Tampa, cidade portuária situada no Golfo do México, onde haveria Missa com a comunidade brasileira nascente, às 19 horas, precedida de um ensaio. Passamos pela Disney World, Celebration, Cabo Canaveral e outras cidades importantes. O tempo parecia relativamente calmo... e tudo aconteceu como previsto.

              A volta, pelas 21 horas, foi em velocidade máxima, pois devíamos estar em casa antes das 23 horas, quando houve o toque de recolher, e ninguém mais podia estar na rua... Todos deviam permanecer em casa da noite do sábado até as 18 horas do domingo. Fomos seguidos e alertados pela polícia, para apressar o passo a caminho de casa... Finalmente chegamos, mas que dormir, que nada! A vigília se fez, carregada de medo e expectativa. O vento começou a rugir lá fora, anunciando a chegada do Jeanne, qual monstro misterioso e cheio de fúria, avançando sobre nós, como a querer engolir-nos... As árvores se retorciam, quebravam, caíam, gemiam... Escuridão total!

Os movimentos circulares do furacão vinham, derrubando e destruindo o que encontravam, num raio de 200 Km. Será que nossa casa resistiria de pé? Interessante que de modo geral todas as residências são cercadas de jardins e pomares, com muitas árvores, o que naquele momento tornou a situação mais dramática. O chamado "olho" do furacão,  se desviou levemente para a região de Tampa, justamente onde não se esperava...

              Mistério! Experiência única e assustadora! Ruas desertas, todos encurralados em casa, o toque de recolher continuava... No Haiti o furacão já havia deixado mais de mil mortos.. Sem energia, não havia nada a fazer senão recolher-me no quarto, pois tudo era chuva e vento, tormenta e escuridão. Sentada no chão, aos pés da cama, busquei uma tênue luz que vinha da janela, e me pus a ler e meditar o emocionante livro das Cartas de Santo Inácio de Antioquia às suas comunidades, antes do seu martírio, o que me inspirou um posterior hino dedicado aos seus seguidores e discípulos. O domingo foi  uma longa "noite escura", onde o silêncio só era interrompido pelo gemer da natureza, como a pedir socorro... Sem a Eucaristia, impossível de ser celebrada, a meditação da Palavra de Deus e das Cartas do bispo mártir de Antioquia alimentaram o meu espírito, tiveram eco no meu coração, onde a música se fez silêncio, pois no dizer do santo "É melhor calar-se e ser do que falar e não ser!"

              Passado o susto, demos graças a Deus por estarmos vivos, porém solidários com os milhares que perderam suas casas, tantos bens e até a própria vida,  atingidos pelo furacão. Pe. Volmar, como bom sanfoneiro gaúcho, me convidou a uma parceria vocal no final do domingo, ainda trancados em casa, para espantar o medo e o isolamento. Era preciso levar na esportiva!... Com o povo? Que canto, que nada!...

              A vida é um mistério... Ela não nos pertence,  no dizer de Santo Inácio de Antioquia:  "Um cristão não tem poder sobre si mesmo, mas está à disposição de Deus.",  mesmo que seja pela voz de um furacão...

              Ah! Minhas aventuras musicais!...

 

Ao balanço das ondas...

              No ano de 1975 eu morava em Santos. Fui até a Cúria Diocesana falar com Dom David Picão, nosso Bispo e meu querido amigo. Conheci então Pe. José Motta, um sorridente e simpático  sacerdote carioca, que viera do Rio para tratar de "assuntos turísticos". Apresentados que fomos um ao outro, ele me disse: "Então a senhora é a Irmã Miria, aquela compositora?... Pois eu faço viagens marítimas com o navio Ana Nery, pelo Touring Club do Brasil, e nós cantamos muito suas  Missa:  da Amizade, da Alegria, da Paz, dos Bem-Aventurados e outras... Não gostaria de viajar conosco? De graça, ajudando-nos a cantar em nossas Celebrações?!..."

              Aquilo foi demais para o meu coração, pelo convite completamente inesperado, mas não podia recusar um tal presente vindo do céu, para um encontro com o mar... Pois assim é Deus em sua providência amorosa, sempre nos surpreendendo e comovendo com seu amor criativo. Então, já naquele final de ano, coração aos pulos,  passei o Reveillon no oceano. O navio zarpou  do Rio no dia 26 de dezembro, com parada no porto de Santos, rumo a Buenos Aires e Mar Del Plata, na Argentina, e Montevidéu, no Uruguai. Foram 13 dias entre céu e mar, tendo o infinito como horizonte e o profundo abismo como chão. Lá estava eu entre os 700 turistas embarcados no transatlântico, bastante deslocada do meu "habitat" natural, mas enfrentando com coragem o novo que se fazia. Uma aventura divertida,  prazerosa, indescritível. Deixar a terra e perder-se entre céu e mar, tocar o infinito com as mãos, experimentar a grandeza de Deus em nossa  pequenez, foi uma experiência  fascinante, que alargou infinitamente os horizontes da minha vida!

              Entre as tantas peripécias acontecidas com esta "marinheira de primeira viagem", lembro bem o mal-estar e os enjôos das noites mal dormidas, pelo balanço agitado das ondas nos dias de tempestade; o vexame que passei na noite do Reveillon, por não saber me vestir adequadamente; as etiquetas à mesa, com as quais não estava acostumada, além do problema com a comida, na base de carne, peixe e marisco, que para uma vegetariana como eu,  não eram nada apetitosos.  Minha sorte foi fazer amizade com o garçon-sacristão, que completava minhas refeições levando-me frutas para o convés, onde livre e só, me esbaldava completando a refeição,  enquanto os olhos se fartavam com as deslumbrantes paisagens marítimas.

              Todos os dias celebrávamos a Eucaristia na pequena capela do navio. Nos domingos e dias de festa, eram todos convidados para o grande salão,  que ao sabor das ondas, nos dava  o tom e o balanço das canções litúrgicas a serem entoadas, acompanhadas de cítara, teclado e violão. O ritmo, por vezes suave e compassado, em outras era agitado e irregular, ditado pelo tempo, dançando nós como folhas ao vento... Que estranha sensação! Fez-me lembrar o Mar da Galiléia,  com ventos ora favoráveis ora contrários, e Jesus no barco  parecendo  dormir,  porém senhor do vento e do mar...

              O que nos emocionava às lágrimas era sempre a despedida das cidades que visitávamos, com o povo acenando, aplaudindo, jogando serpentina, ao som da "Cidade Maravilhosa" e de outras músicas brasileiras,  vindas do convés superior, onde dois conjuntos musicais se revezavam, animando a festa. De novo, o azul infinito do mar e céu... Meu camarote era privilegiado, pois da janela eu espiava os sulcos do navio no mar, os peixes e gaivotas, o pôr-do-sol, a paisagem que só de dentro se pode ver, como a estar envolta, no interior... misteriosa como o mesmo oceano... sempre o mesmo e nunca igual... Como Deus!

              Na volta,  o Ana Nery me deixou em Santos, aguardada por várias Irmãs da minha comunidade, por um grupo de crianças do Coral Infantil da São Judas e outros amigos... O navio turístico me deixou, mas levou meu coração... Foi preciso me adaptar de novo aos limites terrenos da vida  após navegar pelo infinito mundo  de Deus, por entre céu e mar, silêncio e imensidão, luzes e  seres dos mares... Lembrar os cânticos e salmos bíblicos não foi nada difícil, pois estavam ali, em pleno ato:  "Águas do alto céu... mares e rios... baleias e peixes, bendizei ao Senhor!... Tudo o que vive e respira, louve o Senhor!" (cf. Ct Daniel 3; Sl 150)

Voltei ainda duas vezes a navegar por mares do sul... O canto suave flutuou por sobre as  águas...

              Ah! Minhas aventuras musicais!...

 

Eco sonoro nas catacumbas

              Dois Mil foi o ano do Grande Jubileu! Para mim, realmente um "Ano da graça do Senhor". Tantos hinos já compus para Congregações, Igrejas, Escolas, Padroeiros... Naquele ano, a pedido das Irmãs Canossianas de Santos, Deus me inspirou o Hino a Bakhita, a negra sudanesa raptada e  vendida como escrava, e que mais tarde se tornou também religiosa da Congregação, na Itália. Uma história comovente que me tocou profundamente. Se assim não fosse, não se faria música no coração... Portanto, em julho daquele 2000 celebramos o Jubileu na Catedral de Santos, com Dom Davi Picão, Bispo diocesano e devotíssimo da santa, com os cerca de 300 participantes do nosso Encontro de Liturgia e Canto Pastoral, misturando as vozes do Hino às lágrimas de emoção incontida, pois ali ela fizera o milagre que logo mais, em outubro, a levaria aos altares, como Santa Bakhita, assim proclamada pelo Papa João Paulo II. Momentos inesquecíveis aqueles! Mais ainda, o que se seguiu, pois duas semanas depois aconteceu o surpreendente convite das Irmãs para eu ir a Roma com elas, participar da canonização da "afortunada e amada de Deus"... Um presente do céu, que valeu por todos os hinos já compostos na gratuidade do dom recebido do Senhor. Convite irrecusável, pois!

              O dia 1º de outubro foi de chuva de graças que se derramavam abundantes sobre o céu de Roma, celebrando Santa Teresinha e agora também Bakhita, unindo para sempre as duas queridas santas entre si e ao meu devoto coração. Quanto ao Hino, nosso grupo brasileiro o cantou com entusiasmo e emoção na Basílica de Santa Maria Maior,  no dia seguinte à  solene Celebração da Praça São Pedro.

              Entre as muitas programações dos oito dias em que ficamos na Cidade Eterna, uma visita muito especial às Catacumbas de São Calisto, na via Ápia,  espécie de cemitério subterrâneo, com centenas de túmulos dos cristãos mortos nos inícios da Igreja.  Nossa guia nos levou escada abaixo, por labirintos, galerias, corredores escuros, nichos escavados nas paredes, um verdadeiro quebra-cabeças. Tais catacumbas ou cemitérios no subsolo serviam também para as celebrações litúrgicas. E eis que ao chegarmos a uma destas capelas, a chamada Cripta dos Papas, a italiana nos convidou a rezar um Pai Nosso  onde tantas liturgias já haviam celebrado o sangue dos mártires derramado por Jesus Cristo. Padre Caetano Rizzi, postulador da causa de Bakhita, nos acompanhava, e logo se manifestou: "Temos aqui uma Irmã compositora, que compôs a Missa dos Bem-aventurados. Quem sabe possamos entoar alguns cantos dela..."  Imagine-se minha emoção ao ouvir ecoar naqueles lugares sagrados, testemunhas do sangue dos mártires,  os sons de "A certeza que vive em mim... A vida pra quem acredita... Maria, ó Mãe cheia de graça..." e outros mais!... O céu se abriu, a escuridão se fez luz, o coração caiu de joelhos, a voz foi embargada pelas lágrimas. Indizível como o mistério!... Nunca mais fui a mesma, assim como ganharam novo sentido  de eternidade os meus cantos dos Bem-Aventurados.

              Na verdade, bem-aventurada e feliz sou eu, pela graça desta experiência marcante!

              Ah! Minhas aventuras musicais!...

 

Missão confirmada!

              Aconteceu de fevereiro a maio de 1987. A Teologia da Libertação estava no auge. Meus cantos, sempre inspirados no Evangelho, frutos de experiências de Deus, em geral voltados para a Liturgia, receberam críticas por serem "alienados e alienantes", o que me deixou  preocupada e inquieta. Não podia concordar, mas também não tinha argumentos para  me defender, embora sentisse o contrário.

            Decidi então fazer uma viagem e conviver com o povo mais pobre, passando três meses nas comunidades do interior do nordeste. Indizíveis as peripécias por que passei! Foram oito estados percorridos, começando  por Goiás, onde o melhor e mais original foi passar uma semana com a tribo indígena da aldeia Xerente,  hospedada na aconchegante oca de Irmã Silvia, religiosa alemã que com eles morava. Em terras maranhenses, acolheu-me Imperatriz, e depois o Centro dos Mulatos, onde duas Irmãs francesas viviam  em extrema pobreza, como o povo. Lugar de grandes conflitos de terra e vários assassinatos...

               Atravessar de balsa a ilha de São Luiz, na direção de Pinheiros, em plena noite, correr para o que parecia ser um ônibus - era  o único do dia! - que nos buscava à beira da praia, a certa altura me fez gritar ao Pe. William, que fora me esperar: "Padre, agora nós vamos!..." E ele: "Irmã, depois que se entra num ônibus desses,  é se entregar a Deus: "Em tuas mãos, Senhor!"  Ao que lhe respondi: "Isto vai dar música!'... E  deu! Foi a primeira que me nasceu ao longo dessa  fantástica experiência, no contato com o bom e sensível povo nordestino, que embora sofrido, é capaz de fazer festa, pois sabe que só conta com Deus como amigo e defensor. Eis O SENHOR, MINHA FESTA, traduzindo a alma carregada de poesia, inquebrantável fé e  teimosa confiança no Senhor,  alma de quem até a dor encontra rima!

              Depois do Maranhão, foi a vez do quente Piauí, em geral lugares onde estavam presentes nossas Irmãs do Imaculado Coração de Maria. Entre tantas aventuras acontecidas, a mais forte foi atravessar quase a nado o rio que separava a cidade das roças, após visitarmos uma horta comunitária, a 7km de Francisco Santos. A chuva veio sem avisar e logo fez transbordar o até então seco rio... Corpo lavado e alma fecundada, aquela foi a noite que se fez inspiração, aplicando o Salmo 90  à minha experiência concreta. Embalado pela rede, o canto nasceu pronto como uma criança longamente gestada... Sim,  EM TUAS MÃOS,  SENHOR, SEMPRE EM TUAS MÃOS!...

              No Ceará passei por Fortaleza, Juazeiro do Norte e Orós, onde, como sempre, Deus chegou primeiro e foi à minha frente em seu amor providencial, que também me levou ao interior do Rio Grande do Norte. O convite para  ir à Nova Jerusalém,  no Pernambuco,  assistir à Paixão de Jesus - estávamos na Semana Santa - encheu meu coração de alegria e foi uma experiência tocante. Cada vez mais apaixonada pelo povo nordestino,  por sua arte e cultura, sua sensibilidade musical, sua capacidade  incrível de resistência e luta, fui aprendendo o sentido do   compromisso e fidelidade à missão,  no serviço gratuito ao povo de Deus.

              Catolé do Rocha, no agreste paraibano, foi uma aventura particularmente interessante e inesquecível, sobretudo a visita ao sítio "Rancho do Povo", feito de cantos, danças, celebração do povo, transbordante de alegria e entusiasmo, apesar das tantas dificuldades e sofrimentos. Frei Dimas continua lembrado no meu coração... Enfim, a última estação da minha  cansativa mas feliz "Via-Sacra Nordestina": Itamari, na Bahia, onde é gritante a injustiça e exploração dos pobres por parte dos grandes.  Igreja viva a de Ilhéus,  comprometida com os pobres, sobretudo na pessoa de Dom Walfredo Tepe, com quem celebramos a Eucaristia, antes de partir de volta a São Paulo - Santos, onde eu residia na época.

              Confirmada em minha missão de cantar a esperança e o amor, a alegria e a fé, busco agora na memória do coração o que escrevi na contracapa do LP nascido: "Há experiências de vida tão profundas e marcantes, que os sentidos não ousam tocar e às palavras não cabe dizer. Assim o amor, a beleza, o sofrimento, DEUS! Começa então a linguagem do silêncio, da arte, da música!"   O Senhor, minha Festa que o diga, e meu canto, carregado de vida, o repita: "Ainda que longos caminhos meus pés tenham de percorrer, se Deus é o lugar do meu caminhar, ninguém me faz parar. E à morte, sorrindo ou em pranto, em mim nascerá este canto: Em tuas mãos, em tuas mãos, Senhor, sempre em tuas mãos!"

              Ah! As minhas aventuras musicais!...

 

Brahms, com Helmut Rilling

              Quando a Revista CONCERTO, assinada por mim há vários anos, anunciou que a OSESP - Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo - iniciaria outubro de 2008 com a grandiosa obra "Um Requiem alemão", (Ein deutsches Requiem), de Johannes Brahms,  sob  a regência do também excepcional Helmut Rilling, fui depressa conferir se estaria livre numa das três apresentações, pois aquele seria um programa imperdível. Minha possível data foi a sexta-feira, dia 03, que então escolhi. Os ingressos, porém, estavam esgotados, como era de se esperar... Preparei o coração, enchi-o de  pensamentos positivos, na certeza de que Deus me reservaria um bom lugar, atendendo ao meu ardente desejo...

              E lá fui eu de novo. Primeiro, participei da Eucaristia, às 19 horas, para então me lançar à nova aventura, que prolongaria a  celebração eucarística com a música do céu. Na verdade, eu tinha justos motivos para  repetir a experiência: 1) Já cantara o Requiem com o coro da Escola Greiner de Música de Augsburg, na Alemanha, em 1984, quando  lá participei de um Seminário. 2) Conhecia Helmut Rilling, excepcional regente alemão, um dos mais prestigiados maestros  da atualidade e especialista nas obras corais de Bach, cuja gravação completa  registrou em cerca de 170 CDs, com seu Bach-Collegium Stuttgart e outros grupos corais que ele dirige. Simplesmente fenomenal! 3) O mais forte motivo era a própria obra de Brahms, belíssima e comovente, com letra de inspiração bíblica - textos selecionados por ele próprio, tirados do Antigo e Novo Testamento -,  porém moldados de forma livre, conforme sua experiência pessoal, sobretudo pela morte da mãe. Diferente, portanto, de todos os outros, que seguem  o rito romano: Kyrie, Sanctus, Agnus Dei...

              Não é preciso dizer que o meu desejo se tornou feliz realidade, na Sala São Paulo. Assim que, após algumas tentativas - O senhor... a senhora... vocês... teriam um ingresso sobrando ?... -  surgiu aquele anjo bom em forma de venerável senhora, que me estendeu a mão generosa com o convite que lhe sobrava. Incrível como minha felicidade e gratidão se tornaram tão visíveis que a doadora se alegrou também, feliz com a minha felicidade,  o que contagiou todo o ambiente. Como poderia eu conter  minha alegria e o brilho nos olhos,  se ganho asas nos pés que então me transportam voando ao lugar que me cabe no número dos felizardos e privilegiados?!... E se puderam caber no cérebro  de Helmut Rilling os sete movimentos da grandiosa música que ele regeu de cor, é porque antes lhe encheram o coração,  possuindo-o inteiramente. Quanto a nós, pobres mortais, também nos transportamos ao céu, pois que tal experiência musical nos humaniza e ilumina, colocando-nos em sintonia com Deus, o Divino Músico, que em se derramando sobre nós, dá sabor de céu ao barro de que fomos feitos.

              Sobre Brahms, capaz de transformar a dor em texto e melodia com uma sensibilidade e genialidade ímpares,  deixo que fale Dante Cavalheiro, professor da Academia da OSESP:  "A obra, uma meditação de cunho pessoal sobre a experiência  humana universal da dor provocada pela morte, sem qualquer relação com o Requiem da liturgia romana, parece ter sido motivada inicialmente pela situação dramática muito cedo vivida por Brahms, do falecimento de Robert Schumann, seu mentor, num asilo para alienados. Mas a perda da mãe, em fevereiro de 1865, foi o fator decisivo para que o projeto do Réquiem fosse consumado".

              Vale a pena conferir através da escuta de um CD, mas prepare o coração, pois ele vai se comover!... Mesmo que possa não compreender bem o texto em alemão, atente às citações bíblicas, e deixe que a melodia fale por si. Feche os olhos para ver melhor e abra os ouvidos do coração para penetrar mais profundamente no mistério, melhor, deixando-se possuir por ele. A obra, para coro, orquestra , soprano e barítono solistas, deixa a descoberto nossa fragilidade humana,  mas que busca consolo na força da Palavra: "Aqueles que semeiam com lágrimas colherão com alegria.! (Sl 126/125)

              Ah! As minhas aventuras musicais!...

 

Peregrinos em canto!...

              Comove-me o amor terno e providente de Deus, que sempre de novo nos espanta com suas delicadezas de Pai e Mãe, muito além do que ousamos pedir ou merecemos... Já há alguns anos desejava eu pisar os lugares sagrados onde pulsou o coração humano desse  Deus-Amor em Jesus.  Cheguei a ser convidada por um franciscano amigo meu, o que me inspirou o "Peregrinos em canto", com a alma em festa. Não se concretizou. Não era ainda a hora de Deus!...

              Em 2005 cantei no interior de São Paulo, e eis que o surpreendente aconteceu, vindo de um  totalmente inesperado convite de outro padre amigo, cujo nome está registrado no Livro da Vida: "Irmã Miria, gosto muito de você e das suas músicas. Não quer ir à Terra Santa conosco? Você  cuida da liturgia e do canto, o mais fica por nossa  conta!..."  E eu, atônita: "Padre, é o que mais desejo e espero há vários anos!..."  Inacreditável!... Vontade de cantar e dançar, de rir e chorar, de abraçar e gritar a todo mundo a feliz notícia, que de fato se fez experiência de vida.

              Em maio de 2006 os peregrinos em canto nos pusemos a caminho, seguindo os passos de Jesus na Terra Santa por 17 dias, percorrendo o Egito, a Jordânia e Israel, passando ainda alguns dias em Paris, no final da peregrinação. Pisar o chão que testemunhou a Encarnação do Filho de Deus,  beber a água da fonte de Maria,  singrar o  "Lago de Jesus", visitar enfim os Lugares Santos da nossa fé, é algo tão maior do que nós que vai além de qualquer palavra. Experiência espiritual indelével e tocante, que muda para sempre nossa vida, dando-nos olhos e coração novos,  na contemplação  da Beleza e Bondade de Deus tornadas visíveis em Jesus Cristo.

              Belém, um dos lugares santos visitados, imortal desde o nascimento do Salvador, me marcou pelo que lá aconteceu. Situada a uns 8 km de Jerusalém, fomos primeiro ao chamado Campo dos Pastores, uma espécie de gruta onde, segundo a tradição, os anjos apareceram aos pastores anunciando-lhes o nascimento do Menino Deus. Até hoje existem estas grutas naturais, que abrigam pessoas e animais: no inverno protegem do frio e no verão refrescam o calor. A suntuosa Igreja da Natividade, construída sobre a possível Gruta onde Jesus nasceu, tem um detalhe impressionante: a porta de entrada é baixa e estreita,  devendo abaixar-se quem ali deseja entrar.  Para nós, significativo - só na humildade e no rebaixamento de si mesmo, como o fez Jesus, é possível aproximar-se do Grande Mistério!...  Minha emoção foi tanta  que logo ao adentrar a Basílica, soltei a voz e me pus a cantar em alto e bom tom "Quero o céu hoje inteiro se abrindo... Amor imenso..." eoutros cantos natalinos meus, compostos em feliz parceria com Pe. Lucio Floro, a "Missa da Noite Feliz". Durou pouco minha alegria, pois fui logo silenciada, uma vez que o piso de cima, o corpo da igreja,  é de responsabilidade da Igreja Ortodoxa, e lá não se pode cantar sem a sua autorização.  Difícil de se compreender, mas é assim, o que acontece também com outras Basílicas e Igrejas. Portanto, o que pertence à Igreja Católica, sob a custódia dos Franciscanos, é o piso inferior, onde está a Gruta do Nascimento. Lá pudemos então fazer ecoar nossa voz, nos comover e cantar a Noite Feliz, iluminados pela Estrela de Prata com a inscrição "Aqui Jesus Cristo nasceu da Virgem Maria".                De fato, diante da magnitude do mistério, ali cabe mais o silêncio  e a adoração do que a palavra e o canto!...

              Peregrinos em canto, pusemo-nos a caminho, bebemos da fonte, lançamo-nos ao mar, vimos mais além, e agora nos arde o coração - nossas mãos tocaram o Cristo-Deus!

              Ah! As minhas aventuras musicais!...

 

                                                  Nasceu de mim!...

              Gosto de fazer experiências extremas, que são sempre um desafio e nos fortalecem o espírito.

              Desta vez tive o privilégio de conhecer a Região Norte, uma experiência inédita, única, irrepetível.  Começou por Boa Vista, a capital de Roraima, aquela minha viagem musical pela Amazônia, de 1º de dezembro de 1994 a 31 de janeiro de 1995, exatamente 2 meses.  Fazia tempo que a desejava meu coração, convidada por dois grandes amigos: Frei Chico, franciscano, em Boa Vista; e Dom Mario Clemente, então bispo da Prelazia de Tefé, no Amazonas. Foram os meus bons e generosos amigos alemães da Catedral de Augsburg que me possibilitaram financeiramente tal aventura,  vital mais que musical!

              Releio meus apontamentos, que sempre faço em viagens assim especiais e mais longas. Sinto, porém, que tão  ricas e variadas  vivências neste "pulmão do mundo", onde o céu se fez paraíso terrestre, são indescritíveis, não cabem em palavras. Obrigo-me a registrar apenas o essencial, sem os valiosos detalhes!...

              Após o canto em Boa Vista, em clima alegre e festivo, foi comovente  passar  quatro (4) dias na aldeia Raposa do Sol - Santa Cruz, convivendo com os macuxis e ouvindo as histórias da tribo; dormir ao relento, na rede,  tendo por teto a lua pendurada no céu; caminhar com os pés descalços, tocando a sagrada mãe terra; participar, emocionada, de um culto onde cantaram na própria língua "Os que ensinam os outros, um dia, como estrelas no céu brilharão..." nascido de mim e do Pe. Lucio Floro para a CF... - A senhora conhecia tal canto? - Nasceu de mim!... minha comovida  resposta.

              Fantástica aventura foi também a visita à aldeia Xidéia, onde vivem os índios Yanomami, já na divisa com a Guiana Inglesa. Sobrevoando a densa floresta em um teco-teco, o medo foi aos poucos cedendo  lugar ao assombro e à admiração, diante daquele imenso mar verde estendido a nossos pés. Um índio já me ensinara: "Eu sou a natureza!"  E que exuberância, na infinita variedade da vegetação, nas imponentes árvores,  no ondulado das cordilheiras, nos caudalosos rios serpenteando por entre o interminável tapete verde... Uma hora e meia de vôo, e o céu dentro de mim!...  

              Veio então a  viagem ao Amazonas, iniciando por Manaus e depois embarcando num minúsculo avião da TABA, rumo a Caruari. De novo sobrevoando a altiva floresta, de repente o espetáculo aquático, a massa líquida dos rios  Negro e Solimões, formando imenso mar, mistérios da natureza selvagem,  em cuja pujança se revelam a grandeza de Deus e a nossa pequenez, ritual aliás que se repetiu por diversas vezes, voando de Caruaru para Tefé, daí para São Gabriel da Cachoeira, e de volta... Fazer o trajeto por barco seria impossível, pois são semanas inteiras navegando por águas sem fim. Mas é este o transporte do povo, uma vez que sua estrada é o rio, margeado aqui e acolá pelos "tapiris",  pequenas cabanas dos ribeirinhos...

              Caruari, situada no coração da floresta, em meio aos seringais, às margens do "Juruá - o rio que chora",  me emocionou desde a chegada, e durante os 3 dias que lá permaneci, cantando com adultos e crianças, em situações muito precárias, mas com o coração povoado de sonhos e esperanças. A emoção de Boa Vista aqui se repetiu, quando me acolheram com o canto "Amigo, sê bem-vindo!", querendo saber: - A senhora conhecia este canto?..."  - "Nasceu de mim..."  Era sempre a mesma  comovente surpresa.

              Tefé, às margens do imenso lago do mesmo nome, foi meu ponto de referência,  onde passei mais de um mês, cantando, convivendo na comunidade, participando de assembléias, celebrando com o povo. Entre idas e vindas,  também conheci e  cantei  noutras vilas,  lugarejos e cidades, como Jutaí, às margens do rio que lhe dá o nome; Fonte Boa, a cidade que o barrento  Solimões já engoliu algumas vezes e mudou de lugar,  pela força de suas águas e cujo leito ainda não se formou... Após uma noite e um dia de viagem, espremidos em nossas redes, o barco superlotado, desembarcar às suas margens e subir à terra por entre os barrancos aí cavados pelo rio, foi peripécia extravagante, mas que logo se transformou em pura alegria,  pela acolhida do povo e o nosso canto feito vida e experiência de Deus.

              Merece destaque  São Gabriel da Cachoeira, prelazia onde o salesiano Dom Walter Teixeira estava bispo, às margens do Rio Negro, que serpenteia por entre pedras, montes e colinas, formando prateadas e provocantes cachoeiras... A natureza  ali se reveste de uma tal beleza divina, que beira o céu... Predominam os índios "tukano" e "baré",  povo contemplativo ainda com seus  rituais e costumes, lendas, cantos e danças. Contemplativos e reverentes, não menos sofridos,  pelos crimes ecológicos que lá, como em toda a Amazônia, se cometem... Também entre eles os meus cantos se faziam ouvir, comovendo-me à alma!... E de novo a pergunta: - A senhora conhecia? ... - Sim, nasceu de mim!, dizia eu, entre envergonhada e feliz.

               Tefé e São Gabriel da Cachoeira são as duas maiores prelazias do mundo: cerca de 260.000 Km2  de extensão cada uma, algo inimaginável, e com não mais de 15 padres para atender  a população!...

              Voltei carregando na vida mais um pedaço de terra, mais um pouco de povo, mais da beleza de Deus, mais comprometida com a preservação desse santuário ecológico, alargando infinitamente a tenda do meu coração,  já feito canto de aleluia pelas maravilhosas obras do Senhor! Oxalá nasça de mim um canto novo!...

              Ah! Minhas aventuras musicais!...

 

GOL nas nuvens...

              Quando, no final do nosso Encontro de Liturgia e Canto Pastoral em Uberlândia- MG, em maio de 2008, o jovem diácono e jornalista Durval Branowske me procurou para uma entrevista, pedindo também que eu escrevesse de vez em quando algum artigo para a revista "DIOCESANA", brinquei com ele, dizendo que talvez demorasse  a acontecer...

              Mas Deus é mesmo demais e cheio de surpresas. Mal cheguei em São Paulo, e já me senti  impelida pelo Espírito a contar minha experiência da volta, pela GOL, na segunda-feira de manhã, o que me deu muita matéria para reflexão, como dizia Bárbara Maix, nossa santa Fundadora.

              Ensaiando a Missa"Abre-te, ó céu!", que Deus me inspirou para cantar a vida, a morte e a ressurreição, o bom povo mineiro cantou lindamente comigo, colocando toda a força de sua voz e o entusiasmo do seu coração. Aplaudida no final, brincávamos:"A quem de nós o céu se abrirá primeiro?... Espero que demore para mim... Que eu  possa cantar ainda muito aqui na terra ,  antes de ir cantar no céu!" - dizia eu. Foi um momento de descontração e alegria, uma quase brincadeira inocente com Deus. Lembram-se disso os meus amigos presentes ao encontro?...  "Até o céu - perfeita liturgia! Até o céu - nosso cantar sem fim! Até o céu - total, plena alegria! Até o céu - a vida eterna enfim!" - finalizamos.

              Pois bem! Na segunda, ainda de madrugada, eu já estava no aeroporto para o embarque de volta a São Paulo. O sol nascia vermelho, inundando a terra de luz. Eu estava feliz e confiante, com a sensação do dever cumprido, da missão realizada. Portas fechadas! Prontos para decolar! Qual não foi o susto, quando neste exato momento, o piloto avisou haver um problema no reverso do avião, e que devia ser desativado, consertado enfim, sem o que não poderíamos voar. Vôo lotado! Começou a inquietação, a confusão. Gente que desceu para esperar o próximo... a demora que se fez... o medo coletivo tomando conta de nós... e a minha dúvida: fico neste mesmo ou será melhor esperar o próximo, só à tarde? Cheguei a tirar a bagagem, ir para o saguão, para decidir o que faria. Sem um dos reversos funcionando - problema de sistema mecânico do qual pouco entendo, mas foi o semelhante ao acidente da TAM - , não poderia pousar em Congonhas, que era o destino, por não haver espaço suficiente... Iríamos até Confins, em BH, e lá trocaríamos de avião... Reações as mais diversas aconteceram, como se pode imaginar. Enfim, foi decidido que iríamos para Guarulhos,  onde o avião poderia deslizar na pista, sem o auxílio do reverso.

              Pensei comigo: "Preciso chegar logo em São Paulo, mas quero chegar viva! Será que chego?..." Arrisquei. O sol ia alto quando decolamos. Cedo, na sala de espera, eu já havia meditado a Palavra do dia, e o Salmo 90 me tocara:  "Porque a mim se confiou, hei de livrá-lo e protegê-lo... Ao invocar-me, hei de ouvi-lo e atendê-lo, a seu lado estarei em suas dores... Vou conceder-lhe vida longa e dias plenos..."  Aquilo tudo repercutia dentro de mim e me questionava: "Será que é agora que o céu se abrirá pra mim?... O Senhor poupará minha vida?...  Sentimentos mil nos povoam em momentos decisivos como estes... Entre risos e algumas furtivas lágrimas, me fortaleci por dentro e enfrentei a situação. Já em pleno vôo, por entre as nuvens e um céu muito azul, desejei começar a escrever esta aventura. Mas... e se eu não chegasse viva?... Seria melhor esperar...

              Cheguei. Chegamos. Num ímpeto de gratidão pela vida, aplaudi o piloto, que com segurança, deslizou pela longa pista, até parar suavemente no solo. Já em casa, com minhas Irmãs, demos um brinde à vida, tomando o Tim-tam-tum, licor delicioso que minha amiga Dete, de Araxá, me dera. É de experiências assim que se faz meu canto. Deus é bom, muito bom!

              "Abre-te, ó céu!"- cante o nosso coração. Mas se puder ser amanhã ou depois, melhor...

 

              Ah!... As minhas aventuras musicais!...

 

Eu canto a vida... e corro para Deus!

              Faz quase 20 anos que aconteceu. Mas lembro como se fosse hoje. Isso, porque foi marcante mas sobretudo  muito, muito divertido... Vamos ao fato:

              Todos os anos, lá pelo mês de outubro, a TV começa a anunciar a corrida de São Silvestre, convidando  os "atletas" a participar da mesma, no dia 31 de dezembro. Corrida aliás já  histórica no Brasil, colorindo as ruas de São Paulo com gente jovem vinda do mundo inteiro para viver alguns momentos de glória, enquanto percorrem os quase 13 Km da Avenida Paulista e arredores.  Eu sempre dizia às minhas Irmãs da comunidade: "Um dia eu vou correr também..." De modo que começaram a me desafiar, cobrando minha promessa. Não podia eu deixar por menos... Um belo dia, lá fui eu me inscrever na "Gazeta Esportiva".  Recebi o nº654, o que significava que antes de mim já havia 653 mulheres inscritas. Também fiz questão de adquirir a camiseta daquela que foi a  "66ª Corrida de São Silvestre", com a data de 1990. Óbvio que a guardo até hoje... Lançado o desafio,  tinha que enfrentar a situação,  restando agora lançar-me à corrida, aos exercícios, preparando o físico e também o espírito para a largada do grande dia. Mas... e o tempo para treinar e correr? Sem consultar médico algum, sem levar em conta minhas condições físicas, sem dieta especial nem orientação de ninguém, comecei a fazer minhas caminhadas, acelerando o passo, até conseguir "correr um pouco mais depressa..."  Mas só fui fazer o trajeto todo na véspera do dia 31, à noite. Ruas desertas,  somente eu correndo, comentei com os que estavam preparando o local, em frente à Gazeta. Quando me disseram que "os atletas treinam o ano todo e descansam na véspera", compreendi minha surpresa, percebi meu grande engano e total ignorância. Mesmo assim, já sentindo os músculos doendo, voltei para casa e tentei dormir... Sem dúvida, Deus teve compaixão e cuidou de mim e do meu coração... Sei de jovens que, com muito mais preparo e menos esforço,  já ficaram pelo caminho...

              Naquele ano eu havia lançado dois trabalhos musicais, em LP: "A vida que eu canto" e "Solidão Sonora", uma experiência de Deus com São João da Cruz, onde consta também o "Cântico à liberdade", que nos impele a voar para o Infinito, a correr para Deus, sem esperar por ninguém na aventura de voar... Muito inspirador, portanto!  Eu canto a vida... e corro para Deus! Tinham que fazer parte da minha "aventura atlética"!... O melhor jeito foi escrever e pintar as duas frases nas costas da própria camiseta, para que  pudessem ver que ali estava alguém que canta a vida e corre para Deus... Aliás, o apóstolo Paulo também muito me inspirou, fortalecendo-me no desejo de fazer tal experiência: a de não correr em vão, mas ter um rumo certo, uma meta a alcançar, um alvo a atingir. Afirma ele: "... esquecendo-me do que fica para trás e avançando para o que está diante, prossigo para o alvo, para o prêmio da vocação do alto, que vem de Deus, em Cristo Jesus... Qualquer que seja o ponto a que chegamos, conservemos o rumo." ( Fl 3, 13-16) 

              Nem me atrevo a falar o que os curiosos ao longo do percurso comentavam ao me ver alternando a corrida e os passos lentos para retomar o fôlego... Risos, comentários, pouco caso, coisas incompreensíveis... Eu pensava comigo mesma: "Se você soubesse quem está debaixo deste moletom!... Venha experimentar também!..." O que me deu forças para não desistir foi ver, já na reta final, muitos torcendo, gritando, aplaudindo e estimulando a não desistir mas correr até o fim ... Assim que cheguei, o chão foi o limite, doida por inteiro, já sem poder levantar-me... Fui a  262ª a chegar, deixando portanto mais de 300 heroínas anônimas atrás de mim, além das que desistiram no meio do caminho... Fiz o percurso no tempo de 1h19'58'', o que para mim foi uma vitória considerável. A quem deseja conferir, está registrado na "Gazeta Esportiva" do dia 1º de Janeiro de 1991. Fiquei dolorida e dura uma semana,  mas que valeu, valeu!...

              Enquanto o Senhor permitir, continuarei cantando a vida e correndo para Deus!...

              Ah! Minhas aventuras musicais!...

 

Direto ao coração...

              Foi direto ao meu coração o artigo de Arthur Nestrovski na Folha de São Paulo, a 7 de março deste 2009,  comentando o concerto regido pelo maestro francês Yan Pascal Tortelier, na Sala São Paulo, abrindo a temporada da OSESP - Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. A abertura havia acontecido no dia 5, quinta-feira, quando o novo titular da Orquestra iniciou com o Hino Nacional Brasileiro, o que já contagiou e emocionou a platéia que lotava a sala,  aplaudindo-o de pé por longos minutos. Na sexta, o mesmo programa, o que se repetiria no sábado à tarde.  É bom explicar que o regente anterior, John Neschling, havia sido demitido pelo governo do Estado, o que gerou uma série de polêmicas e também de expectativas a respeito do futuro da orquestra. Mas Tortelier, segundo Nestrovski, "foi direto ao coração", conquistando logo orquestra e público.

              Por coincidência providencial, eu estava livre naquele final de semana. Meu coração já ansiava pelo concerto e estava em sintonia, de modo que decidiu conferir o sucesso, a empatia que de início se fizera entre o maestro e os músicos, e entre estes e o público, sempre fiel. Eu tinha de conferir ao vivo o que diziam as palavras do crítico, fazendo eu mesma  a experiência musical.

             E lá fui eu à Sala São Paulo, esmolando algum ingresso... Após umas dez tentativas, já estava perdendo a esperança, quando uma senhorita de nome Renata (fiz questão de lhe perguntar o nome) se aproximou: "A senhora está querendo um ingresso? Pois eu tenho um - presente de aniversário para um amigo, mas ele falhou... Tome, é seu!..." Inacreditável: um convite de R$ 104,00 - balcão mezanino, excelente lugar, e de graça para mim... Ao perceber minha visível emoção e felicidade, sua decepção pela falta do amigo deu lugar a uma alegria maior por me ver assim feliz...Quanto a mim, tive que reprimir meu desejo de gritar cantando "Deus é bom!", fazendo-o no meu coração... Lembramos a parábola do Evangelho: os convidados rejeitaram o convite, deixaram de comparecer,  e em seu lugar vieram os pobres, que encheram a sala e fizeram a festa... Além de mim, haveria outros?...

              Um clima sagrado se fez na sala, transformada em verdadeiro santuário musical, onde o silêncio e o respeito, a alegre expectativa e a reverente admiração se fizeram espaço de escuta, pois uma grande Celebração estava por acontecer, unindo céu e terra num mesmo uníssono. A entrada solene dos músicos da orquestra, o spalla que afinou num único som todos os instrumentos, e finalmente o esperado regente, compenetrado em sua imponente simplicidade e sábia maestria, arrancaram já no início ovações e aplausos emocionados, que aos primeiros gestos de Tortelier, se transformaram em quase suspiros de embevecimento.

              O programa escolhido era especial: Edward ELGAR: Variações Enigma, Op.36 na primeira parte do programa;  Sergei RACHMANINOV: Sinfonia nº 2 em mi menor, Op. 27 na segunda. Não fui a única a me surpreender chorando de emoção mais de uma vez, inteira arrepiada, suspensa a respiração, mãos postas em oração, o coração no céu - ou o céu no coração - mal acreditando estar viva, ali diante da música personificada naquele pequeno ser: seria ele humano? Como seria possível  reger de memória, sem partitura nem batuta, todas aquelas intrincadas melodias, mas de divina beleza? De uma  elegância e leveza  feéricas, qual bailarino  flutuando  diante da orquestra, foi mesmo direto ao coração: da orquestra, que tocou com garra e vontade como há muito não se via, e direto ao coração do público, em total empatia, contagiado pela música que lhe saía das entranhas e nos levava às esferas celestes.  Os aplausos e as ovações finais, os  gritos de "bravo", a teimosa permanência na sala como a querer eternizar o sublime momento, que o digam!... Realmente foi um brinde à vida! Eis a magia,  o encanto e o milagre da música: ir direto ao coração!

              Ah! As minhas aventuras musicais!...

 

Deus cuida de nós!...

              Como e por que nasce a música no coração da gente?... De onde vem a inspiração?... O povo tem curiosidade de saber,  mas como explicar?... Ela simplesmente acontece, vem de repente, se faz de forma espontânea e inexplicável.  Dom e expressão de Deus, sem dúvida. Um mistério!...

             Os motivos podem ser inúmeros: a vida,  um acontecimento, uma palavra, um gesto, um olhar,  uma forte emoção, um simples por-de-sol,  uma grande alegria ou profunda dor...

              O que aconteceu comigo no memorável dia 7 de fevereiro de 2003 - era uma sexta-feira, bem me lembro - foi tão surpreendente e tocante, que só podia se fazer música. Do acidente físico à experiência espiritual! Do atropelamento corporal ao  canto interior! Da morte  à  ressurreição!

              Explico:

              Naquela tarde, andando com pressa, tentei atravessar a Rua Belém, no Largo próximo à Igreja, embora percebendo que o sinal acabara de  fechar... Teimei em correr, mas o micro-ônibus correu mais do que eu, e bem na esquina,  me derrubou ao chão:  bati com a cabeça no meio fio e fiquei inconsciente...

Contaram-me, depois, que naquela gravíssima situação, eu respondia com clareza e coerência todas as perguntas. Entretanto,  eu não tinha consciência de nada, nem de dor. Diz a ciência que os mecanismos do nosso inconsciente bloqueiam a sensação de dor extrema para nos preservar do sofrimento. Bondade e sabedoria de Deus, que veio em meu socorro, mandando logo muitos anjos bons, que me socorreram, chamaram o resgate, recolheram os meus pertences espalhados pela rua... Num instante,  vieram as Irmãs, que me acompanharam ao hospital, onde permaneci por dois dias. Aos poucos recuperei a consciência: vários pontos na cabeça agora enfaixada, algumas costelas quebradas,  dolorida inteira, porém viva e ressuscitada, milagre de que aos poucos fui me dando conta...

              O emocionante foi que no domingo seguinte a liturgia celebrava o tema "enfermidade e cura", cantando o salmo 147/146, que eu musicara: "Louvai a Deus, porque ele é bom... Ele conforta os corações despedaçados, enfaixa suas feridas e as cura..."  Inacreditável!... Era demais ouvir e acompanhar a Missa pela TV, estando eu em situação semelhante à do salmista... Coincidência providencial! Se ao menos eu pudesse chorar!... Mas a dor não  o permitia. No entanto, foi ela que  transformou as feridas  em notas musicais, fazendo-me experimentar a infinita misericórdia de Deus  que me poupara da morte e  devolvera a vida. Telefonemas, visitas, mensagens, orações, manifestações de todo canto e de todo jeito, foram preenchendo meus dias de repouso forçado,  levando-me a refletir sobre os mistérios da vida e da morte, e de como Deus  nos vai conduzindo por caminhos inimagináveis, em sua  amorosa Providência.

              E foi assim que a canção nasceu: aos poucos, palavra por palavra, nota por nota, lágrima por lágrima... como um  salmo da vida, rosário de contas sem conta... Música  sempre maior do que nós, que vai nascendo dentro, no mais fundo do coração, transbordando aos poucos até se tornar uma cascata de sons e palavras, carregada de segredos, esperando ser adivinhada em seus porquês e intraduzíveis sentimentos.

              Cuidas de mim... cuidas de nós, Senhor! foi como batizei meu canto com sabor de Novo, acordada que fui pelo sopro do Espírito que nos modela e refaz. Sim, a vida é um milagre constante do amor materno de Deus, que nos guarda na partida e na chegada; mão que se faz chão para nos erguer, como o foi aquela da mulher que suspendeu minha cabeça, para poupá-la do duro chão em que caíra... A  misericórdia e compaixão do nosso Deus, experimentadas naquela situação extrema de dor, me ajudaram a  alargar os espaços da  tenda do meu coração até  horizontes infinitos... Efêmeros e frágeis como a erva do campo, que hoje floresce e amanhã já não existe, podemos no entanto ser lugar e espaço para os pequenos e grandes milagres do Eterno que  cada dia nos ressuscita e faz cantar!...

              Ah! Os toques de amor, as mãos amigas, os descuidos meus e os cuidados de Deus!... São eles que me inspiram o cantar, "mesmo em pedaços",  lampejo de inspiração que então me nasceu e que até hoje se aninha em meu coração sem ter vindo completamente à luz...

              A quem quiser conferir o fruto musical daí nascido, está registrado pela doce voz de Laura Lins, no CD O MAIS ALÉM, gravado com as Paulinas/COMEP. Se você compartilhou da minha dor e renasceu comigo, é provável que vá sentir grande emoção ao ouvi-lo... A experiência pessoal de  fragilidade humana tornou mais evidente a compassiva misericórdia  do Deus  Pai e Mãe  que cuida de nós e é canto em mim!

              Ah! Minhas aventuras musicais!...

 

Um concerto que veio do céu...

              Há muitos anos  assino a Revista CONCERTO, que traz mensalmente os acontecimentos culturais da cidade de São Paulo, sobretudo com relação à música erudita e concertos.  E quando estou trabalhando na minha sala, só escuto o rádio Cultura FM, que só divulga a boa música, sobretudo a clássica.  Foi assim que na última sexta-feira de julho de 2010, ouvi anunciado o concerto que a Orquestra Sinfônica de Heidelberg (Alemanha) faria nos dias 2 e 3 de agosto, na Sala São Paulo. Houve um sorteio para dois ingressos. Fiquei atenta, e logo enviei e-mail à rádio, candidatando-me para ser a eventual felizarda do presente musical. Perdi para outro assinante... Mas qual não foi minha surpresa ao receber um telefonema, já na segunda-feira,  comunicando-me ter sido sorteada, em vista da impossibilidade do primeiro candidato a comparecer. Não pude conter minha alegria e pus-me logo a comunicar a feliz notícia, fazendo também convites vários, sempre recusados. Até que encontrei um jovem músico da nossa paróquia, que não conhecia a Sala São Paulo e que aceitou fazer a experiência musical comigo.

              O que aconteceu naquela noite iluminada superou de longe as minhas expectativas... Eu já havia assistido a um concerto da Sinfônica de Heidelberg, com o nosso pianista Nelson Freire, e a sabia de altíssima qualidade e perfeição. Desta vez ela tocou sob a regência do excelente Thomas Fey. Para completar, um convidado muito especial, o jovem pianista Haiou Zhang, chinês de apenas 26 anos, mas que já percorre o mundo, acompanhando as melhores orquestras, um verdadeiro fenômeno do piano. Fui preparando meu coração para aquela que seria uma noite única, de certa forma divina...

              Antes de adentrar o espaço sagrado da música, santuário musical, um encontro providencial me deteve e fez feliz: Elisa Freixo, concertista e professora de órgão, que aliás toca na Catedral de Mariana, contatos com Dom Luciano, e amiga de muitos anos, lá estava, também com um "convite esmolado", como ela confessou sempre fazer. Fato que me consolou, pois é assim que costumo fazer. Encontrei uma parceira que se planta lá e que sempre consegue um espaço... Me deu força e ânimo para assim continuar

              Ah! Minhas aventuras musicais!...

 

Com o Músico de Deus!

              Meu ano de 2010 não podia terminar melhor e de forma mais musicalmente divina do que com Anton Bruckner, o místico e devoto compositor austríaco chamado "Músico de Deus", apresentando sua Nona Sinfonia, que ele dedicou ao "Rei dos reis, seu amado Deus"... E isso na Sala São Paulo, com o extraordinário Yan Pascal Tortelier à frente da excelente OSESP!...  Tinha tudo para ser uma noite iluminada e iluminadora! Só não tinha mais ingresso disponível, estava tudo esgotado. Mas o programa era imperdível. E, portanto, como tantas outras vezes ao longo deste ano, eu tinha que arriscar... Confiante de que o bom Deus me daria tal presente,  lá fui eu para a Sala São Paulo, bem antes do início do concerto, às 21 horas. Atenta aos que chegavam, comecei a esmolar ingresso... Não demorou muito, eis que chega uma distinta senhora, desacompanhada e parecendo ter uma sobra. Dirigi-me a ela com a mesma pergunta de sempre: A senhora teria algum ingresso sobrando?... Ela me olhou espantada,  certamente a querer dizer: "Como adivinhou?"... E logo estava eu com  o precioso documento, que me permitiria adentrar o recinto sagrado da música. O lugar? Platéia elevada, no final da sala, com uma perfeita visão do palco, e ao lado da generosa dama, que depois me explicou sobre a amiga, na última hora impedida de comparecer. Senti-me mais uma vez privilegiadíssima e favorecida por Deus, em seu providente amor... Só tinha um modo de agradecer: entregar-me inteira ao feliz momento musical, saborear cada acorde,  rezar com o autor e a orquestra a divina música que nos era oferecida.

              Anton Bruckner há muito me entrou no coração, não só pela relação que ele teve com a música sacra, religiosa e litúrgica, mas também pelo que ele significa historicamente para a nossa Congregação...

               Austríaco, nascido em 1824, perto de Linz, e falecido em 1896, em Viena, foi ele menino-cantor na abadia de São Floriano, suntuoso mosteiro barroco, a 16 km de Linz,  onde também foi professor, maestro de coro e organista, ambiente que se tornou para ele um verdadeiro centro espiritual e vital. Sua fé sólida  e fiel devoção à Igreja foi a base de sua inspirada criação, entre Missas corais, um majestoso Te Deum,  Magnificat, Réquiem, Salmos e motetes diversos, "tudo para a maior glória de Deus". Além das suas obras religiosas, dedicou-se especialmente a compor Sinfonias, grandiosas e  ousadas, líricas e de certa forma sacras,  uma vez que em toda sua obra, fosse música religiosa ou sinfônica, sempre houve a presença de Deus. Sua ardente fé, seu profundo espírito religioso, sua humildade em servir ao bom Deus pela música, o lembram e comparam a Bach, também todo de Deus e para Deus!

               A Nona Sinfonia, em ré menor, executada nesta solene noite de 17 de dezembro de 2010, ficou incompleta, porque o "Músico de Deus" a estava trabalhando, quando faleceu... Cheia de contrastes harmônicos, ora lírica, ora impetuosa, tem apenas três movimentos: Solene - festivo; Scherzo -  divertido e animado; Adágio -  lento e solene, epílogo um tanto triste, mas cheio de esperança no  "bom Deus", a quem Bruckner dedicou esta sua Sinfonia Inacabada. Como não se comover, ao ouvi-la soar naquela sala sagrada, conduzida pela alma de Tortelier tocando  a orquestra  e comovendo o público?...

              Merece destaque seu  Te Deum , considerado sua melhor obra: um exultante e nobre canto de ação de graças, de intensa espiritualidade e sentimento religioso, expressão máxima de sua religiosidade. Como ele  esperou em Deus e na sua misericórdia, o céu parece mesmo abrir-se para acolhê-lo de braços abertos, quando ouvimos o "Non confundar in aeternum - Não serei confundido eternamente.." - nos diz Otto Maria Carpeaux, em sua "Uma Nova História da Música". Enquanto aqui registro minha experiência musical, ouço-o novamente, não sem emoção, com o coro da Ópera Estatal de Viena, sob a regência de Zubin Mehta.

              Os restos mortais de Anton Bruckner repousam na capela barroca do Mosteiro de São Floriano, abadia que ele serviu durante sessenta anos. Foi atendido em seu desejo de ser enterrado junto ao órgão, que ele fez soar como ninguém, e que recebeu seu nome "der Bruckner Orgel" - o órgão de Bruckner.

               Por duas vezes tive a graça de visitar a abadia com sua capela barroca e participar da Eucaristia, numa das quais o Senhor me inspirou o canto "A força da Eucaristia". Se o genial Bruckner fez naquele solo  sagrado sua experiência de Deus, a quem serviu fielmente até o fim da vida; se em 1848, Bárbara Maix e suas 21 companheiras, saindo de Viena rumo a Hamburgo, na mesma capela participaram da Eucaristia que as fez caminhar rumo ao desconhecido; também este mesmo Deus me permitiu, na década de 1990, pisar aquele chão e tocar o céu, fazendo a tocante experiência da sua divina e inspiradora presença.  

              Tem razão Lauro Machado Coelho, em seu livro "O Menestrel de Deus - vida e obra de Anton Bruckner" (ALGOL Editora, São Paulo, 2009), quando diz que "A arte tem a sua origem em Deus e, portanto, deve levar de volta a Deus."

              Ah! Minhas aventuras musicais!...

 

Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo!

Marin Alsop,regente

Nelson Freire,piano

 

              A noite de 2 de outubro de 2013 foi mais uma destas noites mágicas, quase divinas, feitas de música e elevação do espírito. Sempre que posso, vou à Sala São Paulo, nosso santuário musical, onde o coração se ilumina, silencia para ouvir melhor, se eleva da terra e experimenta um pouco do céu...

              E assim foi mais uma vez. Porém especial. A começar pelo convite, ingresso que eu não tinha, mas arriscando como sempre, na esperança de que uma alma boa e generosa me conseguisse algum na hora... Afinal, não é todo dia que se pode ouvir e saborear nosso famoso pianista, o mineiro Nelson Freire, tocando com a orquestra, sob a batuta da maestrina norte-americana Marin Alsop, agora à frente da OSESP, cada vez melhor, mais dinâmica e vibrante...

              Chegada à Estação Júlio Prestes, ponto final do trem, me deparei com um deficiente visual, e lhe perguntei se gostaria de ajuda. Ao que ele já se apoiou no meu braço, e saímos juntos... Para onde iria ele? Para a esquerda. Como eu. Qual o local? Sala São Paulo. Como eu. Foi emocionante saber que o nosso destino era o mesmo: assistir ao Concerto da OSESP, nesta noite memorável. Sim, porque foi esta uma espécie de pré-estreia da turnê que a orquestra fará na Europa, a partir deste sábado próximo, de 5 a 19 de outubro, quando tocarão nas mais importantes salas de concerto do mundo, com apresentações na Irlanda, Inglaterra, Alemanha, Áustria, Suíça e França, entre outros países.

              Bem, quando adentramos juntos a bilheteria da Sala São Paulo, eu o deixei com os amigos funcionários, que já conhecem Paulo e o tratam carinhosamente por "Paulão",  para então voltar e adquirir meu ingresso. Qual não foi minha surpresa e emoção, quando a jovem da bilheteria  me olhou, sorriu e   alcançou um ingresso gratuito, discretamente, solicitando que eu entrasse com ele e o conduzisse à sala.  Logo compreendi a mensagem e me comovi: era Deus ali me esperando, se adiantando em carinho e ternura. Era o dia dos Anjos, bons mensageiros do Senhor! E o meu canto bem o diz: "Sê também um anjo mensageiro,  bom na vida do irmão!..."   Pequenos gestos podem fazer uma grande diferença! A música que ouvi depois teve um sabor novo, de céu, de amor, de felicidade!

              Marin Alsop e a OSESP estavam brilhantes, expressando garra, entusiasmo, emoção. Motivados  por esta viagem musical à Europa, nos presentearam com uma pequena amostra do que será sua presença musical no Velho Mundo. Começando pela jovem compositora Clarice Assad, ali presente e aplaudida, com sua "Terra Brasilis - Fantasia sobre o Hino Nacional",  foi seguida pelo insuperável  Beethoven, com seu Concerto nº 4 para Piano em Sol Maior, tendo ao piano nosso genial pianista Nelson Freire, sempre bem-vindo aos nossos palcos. Aclamadíssimo pelo público,  voltou várias vezes e nos brindou com "Jesus, alegria dos homens", de Bach, para nossa alegria... A segunda parte do programa foi dedicada ao russo Sergei Prokofiev, com a Sinfonia nº 5 em Si Bemol Maior - duração de 46 minutos, que nossa maestrina regeu de cor, totalmente possuída pela força da música.  Um fenômeno!

              Como Deus é Bom! Como a música faz bem! Como é bom partilhar com os irmãos experiências que elevam o espírito, alimentam a alma e nos fazem melhores!... Isso  torna o mundo mais humano e bonito!

              Desejo à OSESP sucesso e bênção de Deus, nosso Artista Maior!

 

              Obs: Não é permitido tirar fotos durante o concerto. As  que  tirei, mostram Nelson Freire deixando o palco, e o interior da Sala São Paulo, hoje uma das melhores do mundo.

              Ah! Minhas aventuras musicais!...

 

Chuva de notas musicais!...

              Foi em 1996, após cantar com as comunidades brasileiras e portuguesas nos Estados Unidos, que aproveitei para esticar a viagem até a França, com destino a Lisieux. Frei Patrício Sciadini, meu amigo carmelita, me pedira para compor Missa e cantos "teresianos", em vista do centenário da morte de Santa Teresinha, em 1997. Eu não podia deixar de atender a este pedido, primeiro porque não por acaso levo o nome da Santa; depois, porque já havia feito uma forte experiência carmelitana de Deus com São João da Cruz, da qual nasceu "Solidão Sonora", em CD, pelas Paulinas-COMEP.

              Os milagres da "Petit Thérèse" em meu favor já começaram no aeroporto Charles de Gaule, em Paris, onde minha sobrinha Tânia Mara me esperava, levando-me para sua casa. Tudo na capital parisiense estava em greve... Como me locomover? Como chegar a Lisieux, sem nada conhecer e apenas soletrando alguns fonemas da suave língua francesa? Só foi o tempo de a minha sobrinha com o marido me levarem de carro para Lisieux, uma vez que três dias depois se mudariam para Hong-Kong. Portanto, o primeiro milagre!...

              Hospedada que fiquei com as Irmãs da "Pèlerinage Sainte Thérèse", na Rua do Carmelo, estava muito próxima de tudo o que dizia respeito a Teresinha: o Carmelo, a Basílica, a Catedral, a Casa dos Buissonnets e outros lugares santos... Na verdade, uma experiência emocionante, indizível. Comecei a leitura e meditação de "A história de uma alma", que me fazia chorar copiosamente, e conforme a passagem descrita, lá corria eu para ver "in loco" os fatos acontecidos, a vida vivida pela querida santa. Dentre eles, o que mais me tocou  e comoveu, foi o da "escada da conversão", onde passei horas, na casa em que moravam os Buissonnets, e onde Teresinha teve sua primeira conversão, aos 13 anos, num Natal histórico de sua vida, segundo ela mesma. Quanto chorei e meditei, sentada aos pés daquela escada, contemplando o mistério de Deus tocando aquele coração sensível de criança, já  na sua infância, tão atento e aberto à graça e aos apelos do Senhor!

              Diariamente, durante os dias que lá passei, freqüentava o Carmelo, ficando amiga do jovem sacristão Filipe, que me mostrou alguns segredos: a 4ª cadeira do coro, por ela ocupada; o antigo altar onde a pequena santa ousou subir e bater na porta do sacrário, pedindo socorro a Jesus; o corredor do palratório onde o pai a entregou às Irmãs, ajoelhando-se para lhe beijar as mãos...

              Um dia encontrei uma Irmã e lhe pedi que me desse uma das tantas rosas que Teresinha recebia dos devotos, estando sempre e completamente florida a sua capela, onde se encontram as relíquias. Prometeu ela me atender, mas sumiu... Tornei a "esmolar" a outra funcionária, nada sorridente nem amiga. Ela não foi nada simpática  comigo e me espantou com seu mau humor e grosseria. O que eu podia fazer senão ir chorar aos pés da minha Santa?... Foi então que aconteceu o 2º milagre! Com o coração triste e ferido, eu fiz um novo trato: "Querida Santa Teresinha, não quero rosas, não preciso de flores. Necessito é de inspiração. Combinemos então o seguinte: cada rosa, uma música; cada pétala, uma nota musical!..." Foi como que um toque mágico, e a inspiração começou a fluir no meu coração, derramando-se em chuva de notas musicais...  Sempre com alguma imagem dela comigo -  olhos nos olhos, eu a consultava sobre o canto que nascia, e Teresinha como que ditava e aprovava o que eu devia cantar e dizer. Difícil explicar, mas eu sentia, experimentava essa presença extraordinária, perfumada, inspiradora... Foi assim que nasceram meus cantos teresianos.

              Outras peripécias marcaram minha volta a Paris, onde fiquei mais alguns dias, hospedada com as Irmãs da Assunção, completando o trabalho, visitando lugares sagrados, com a cidade ainda em greve. Mas bastam estas para que os amigos e devotos de Santa Teresinha saboreiem com novo gosto  os cantos nascidos no meu coração e registrados no CD  "SEREI O AMOR", gravado com a Paulus,  resultante desta experiência tocante e única.

              Derrame a "Petit Thérèse" sobre toda a Igreja e os seus devotos uma abundante chuva de rosas, digo, de notas musicais, que nos toquem as fibras da alma, façam cantar o Amado e nos ajudem a também ser o amor no coração da Igreja! Como ela foi!...

              Ah! Minhas aventuras musicais!...

 

                                                                                                                                                                                                                                                                          Irmã Miria T. Kolling